MENDES, Lucas. Caipira Picando o Tempo. 2025. Óleo sobre tela de linho, 80 × 120 cm. Série: Neoantropofagia. Edição única. São Paulo: acervo particular.
Caipira, teimoso e demasiado humano
Seja qual for a pressa do espectador, esta obra lhe faz um convite: desacelerar e olhar para o ritual. Explicaremos melhor adiante, mas antes vale situar: trata-se de uma releitura de Caipira Picando Fumo (1893), de Almeida Júnior. Na tela original, quase nada acontece além de um sol escaldante e um gesto quase meditativo do personagem. Predomina uma quietude típica da idealização oitocentista do campo — a imagem praticamente perfeita de uma vida mansa.
Aqui, porém, o cenário é outro. Do século XIX para cá, o êxodo rural explodiu, e a lógica agroexportadora asfixiou modos de vida sossegados como o do caipira. Pequenas propriedades deram espaço a monoculturas e máquinas. E o nosso herói, tornado desnecessário e deslucrativo, foi empurrado para o deus-dará urbano. Sem economia familiar, sem compadres e trabalhando 44 horas por semana — mais o tempo de transporte —, picar fuminho de boa virou luxo. Nas metrópoles, a regra é correr, produzir e gastar a vida em benefício alheio.
Nesta releitura, o caipira ressurge no interior de uma casa modesta, de alvenaria, já longe do sossego do sítio. Está quase afogado em anúncios, ofertas, papéis e zunzunzuns comerciais — um excesso informacional que parece encurtar o tempo nas cidades. Ainda assim, algo permanece: o homem segue picando seu fumo, paciente, embora preso na lógica produtivista da qual dificilmente escapa. E continua não por conformismo, nem por jogação de toalha, mas por uma microrresistência de não deixar o ritual morrer — a teimosia tão humana de colorir a vida com coisinha besta. Nem tudo, afinal, precisa ser funcional ou justificar sua existência; basta que nos preencha. Como passar um bom café e dar um cheiro na moleira do filho antes da labuta — ainda que o estresse do momento diga que nada disso importa.
Esta obra foi concebida no ambiente digital, com softwares de edição e inteligência artificial, e executada de forma analógica, integralmente em óleo sobre tela. A escolha do meio integra a mensagem: ao contrapor a rapidez do digital ao tempo da pintura manual, o trabalho reforça o mesmo convite inicial — desacelerar, respirar, observar —, inclusive em um contexto tecnológico. É um gesto em defesa de uma vida menos guiada pela eficiência a qualquer custo e mais aberta ao afeto e ao instante. Um lembrete de que, enquanto houver alma, progresso e tecnologia devem ser meios a serviço da vida — e não fins. A felicidade ainda mora nos detalhes.